segunda-feira, 19 de outubro de 2015

GÖTTERDÄMMERUNG – O Crepúsculo dos Deuses – Sófia, 9 de Julho de 2015


(review in English below)

“Götterdämmerung” é a derradeira ópera da tetralogia “Der Ring des Nibelungen”, encerrando assim esse ciclo ímpar na história da ópera.
Para além de ser uma ópera longa (cerca de quatro horas e meia de música, sem contar com os intervalos), tem uma estrutura narrativa complexa. Todavia, assistir ao vivo à mesma, como culminar da tetralogia, é uma experiência avassaladora.


Prosseguindo o percurso lógico iniciado nas óperas anteriores, a encenação de Plamen Kartaloff encontrou um bom ponto de equilíbrio entre a fidelidade à história do libretto e o recurso a simbolismos que abrem novos pontos de vista sobre a acção e seu significado ou que exploram associações de ideias menos óbvias.
Com recurso a figuras geométricas e a formas simbólicas – o cone, o arco, a mandorla, o tríscelo – o encenador vai ilustrando a acção e descodificando algumas das ideias subjacentes à música e às palavras cantadas.

(Prólogo - Foto do site da Ópera de Sófia / Prologue - Photo by Sofia Opera House site)

Veja-se, por exemplo, que o “Götterdämmerung” começou aqui com o exacto cenário do final do “Siegfried”, uma espécie de ninho de amor entre Brünnhilde e Siegfried no interior da mandorla, forma que simboliza, entre outras coisas, o embrião humano.

(Prólogo - Foto do site da Ópera de Sófia / Prologue - Photo by Sofia Opera House site)

Mais tarde surge o símbolo celta do tríscele (ou triskelion), como que um óvulo contendo a sabedoria do mundo, do interior do qual aparecem as Nornas.

(Jornada pelo Reno / Rhein Journey - Photo by Sofia Opera House site)

Durante a “Jornada pelo Reno”, a penetração da mandorla pelo cone que serve de barco a Siegfried acentua a ideia da humanidade de Brünnhilde e de  que a junção de ambos é carnal e não apenas espiritual.

(Acto I - Foto do site da Ópera de Sófia / Act I - Photo by Sofia Opera House site)

No palácio dos Gibichungs, Gunther surge como um astrónomo, observando os planetas ou a passagem de estrelas cadentes, tipicamente anunciadores do fim do mundo. Paralelamente, cubos com os desenhos das crianças de “Os Sete Planetas e os Zodíacos”, de Hans Sebald Beham (1500-1550), que seriam aquelas em cuja vida a influência de um planeta é dominante e que, por isso, se acreditava possuírem as qualidades dos deuses antigos.



(Morte de Siegfried - Foto do site da Ópera de Sófia / Siegfried's Death - Photo by Sofia Opera House site)

A cena da morte de Siegfried foi impressionante, com o herói morto caído sobre uma plataforma que simboliza a sua espada, acompanhada de projecções lunares, que funcionaram muito bem.

(Imolação- Foto do site da Ópera de Sófia / Immolation - Photo by Sofia Opera House site)

Na cena da imolação de Brünnhilde vemos mesma à garupa de Grane e acoplada à plataforma onde continua Siegfried morto, quebrando o grande anel, ao mesmo tempo que imagens de chamas vão tomando conta do cenário.

(Acto III - Foto do site da Ópera de Sófia / Act III - Photo by Sofia Opera House site)

No final, na derrocada do Walhalla, os cones estão em fogo e vemos os deuses caminhando em direcção às chamas, cambaleantes, para tudo dar lugar ao azul do Reno. Uma visão clássica, mas dramaticamente eficaz.



A direcção musical de Erich Wächter conseguiu imprimir mais intensidade à progressão musical e, em certos momentos, foi electrizante. Recordo-me, por exemplo, da segunda parte do Prólogo, em que o dueto entre Brünnhilde e Siegfried arrancou uma espontânea salva de palmas do público, que foi caso único durante toda a tetralogia.
Infelizmente, todavia, a orquestra continuou a exibir algumas falhas técnicas.



O coro esteve bastante bem, quer ao nível vocal, quer ao nível de presença em palco.



No papel de Siegfried voltámos a ter o excelente Martin Iliev, que confirmou a magnífica imagem que já tinha dado ao cantar Siegmund, exibindo uma voz brilhante, potente e com um timbre radioso, a par de um temperamento dramático apurado. Mais uma vez ficou a sensação de que se trata de um cantor que qualquer casa de ópera mundial não desdenharia ter nos seus elencos.


(Yordanka DerilovaFoto do site da Ópera de Sófia /  Photo by Sofia Opera House site)

Em Yordanka Derilova tivemos a terceira Brünnhilde da tetralogia e, sem margem para dúvidas, a melhor de todas. Voz potente e bonita, de carácter dramático mas de timbre não pesado, exibindo excelente projecção vocal. A par destas qualidades vocais, a evidente capacidade de traduzir vocalmente uma ampla gama de emoções,  uma presença em palco cheia de dramatismo e bons dotes de actriz, aliadas a uma bela figura física, fizeram de Yordanka Derilova uma Brünnhilde convincente e de grande qualidade.



Hagen foi interpretado pelo baixo Petar Buchkov, que cantou de forma eficaz, conseguindo conjugar a raiva que anima a personagem com a subtileza e dissimulação com que actua.



A soprano Tsvetana Bandalovska cantou a dividida Gutrune. Como já se havia notado, a sua voz bonita e dotada de um timbre claro, aliada a uma excelente figura, permitiram criar uma personagem credível.



Gunther ficou a cargo de Atanas Mladenov, que cantou com correcção e afinação, fazendo transparecer a personalidade apagada e passiva do meio-irmão de Hagen.



A Waltraute coube a Tsveta Sarambelieva, que exibiu uma boa potência vocal e uma personalidade vocal assertiva, o que tornou o seu diálogo com Brünnhilde bastante bem conseguido.



Alberich foi novamente Biser Georgiev, que não desiludiu.



As Nornas foram cantadas por Lyubov Metodieva, Ina Pertova e Tsveta Sarambelieva, tendo cumprido vocalmente com eficácia, para além de boas presenças em palco.



As Filha do Reno foram cantadas por Irina Zhekova, Silvia Teneva e Elena Marinova.

Podemos ver aqui um vídeo com o resumo da produção.

Terminou assim a primeira tetralogia a que tive o privilégio de assistir, num teatro de ópera menos em evidência e que não é um destino evidente, mas que apresentou um espectáculo de excelente qualidade, que rivaliza com as melhores produções mundiais da actualidade.
Em suma, uma experiência operática que não irei esquecer.

(Foto do site da Ópera de Sófia /  Photo by Sofia Opera House site)

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Götterdämmerung - The Twilight of the Gods - Sofia, July 9, 2015


“Götterdämmerung” is the last opera of the tetralogy “Der Ring des Nibelungen”, ending this unique cycle in the history of opera.
In addition to being a long opera (about four and a half hours of music, plus intermissions), it has a complex narrative plot. However, attending to a live performance of this culmination of the tetralogy, is an overwhelming experience.

Continuing the logic present in previous operas, the staging of Plamen Kartaloff found a good balance between fidelity to the history of the libretto and the use of symbolism that opens up new views on the action and its meaning or explores less obvious associations of ideas.
Using geometric solids and symbolic forms - the cone, the bow, the mandorla, the triskelion - the director ilustrates the action and decodes some of the ideas behind the music and the words sung.
As an example, “Götterdämmerung” began with the same setting that ended “Siegfried", a kind of love nest between Brünnhilde and Siegfried locked within the mandorla, a symbol, among other things, of the human embryo. Later, the Celtic triskelion symbol appears as an egg cell containing the wisdom of the world, from the interior of which appear the Norns.

During the "Rhin Journey" the penetration of the mandorla by the cone that serves as a boat to Siegfried accentuates the idea of Brünnhilde’s humanity and that their junction is carnal and not just spiritual.

In Gibichungs’ Palace, Gunther emerges as an astronomer, observing the planets or the approaching of blazing stars, typically seen as signs of the end of the world. At the same time, cubes with drawings of the children of "The Seven Planets and the Zodiacs" by Hans Sebald Beham (1500-1550), which would be those on whose life the influence of a planet is dominant and who, therefore, were believed to possess the qualities of the ancient gods.

The Siegfried's death scene was impressive with the dead hero fallen on a platform that symbolizes his sword, accompanied by lunar projections, which worked very well.

In the immolation of Brünnhilde scene we see her on the back of Grane and coupled to the platform where is dead Siegfried, breaking the big ring, while flames start to take over the whole scene. In the end, when Walhalla collapses, the cones are on fire and we see the gods walking towards the flames, after what all gives way to the blue Rhine. A classical view, but dramatically effective.

The musical direction of Erich Wächter imprinted more intensity to the musical progression and, at times, was electrifying. I remember, for example, the second part of the Prologue, in which the duet between Brünnhilde and Siegfried snatched a spontaneous round of applause from the audience, which happened only once during the entire tetralogy.
Unfortunately, however, the orchestra continued to show some technical failures.
The choir was quite good, both in vocal level, as in terms of stage presence.

In the role of Siegfried we had again the excellent Martin Iliev, who confirmed the magnificent image that had already been given when he sang Siegmund, displaying a bright and powerful voice, with a bright timbre, along with a sharp dramatic temperament. Again I got the feeling that this is a singer that can have place in any world opera house.

In Yordanka Derilova we had the third Brünnhilde of tetralogy and, beyond any doubt, the best of all. Powerful and beautiful voice, dramatic character but not heavy timbre, with excellent vocal projection. Alongside these vocal qualities, the evident ability to translate vocally a wide range of emotions, a presence full of stage drama and good actress skills, combined with a beautiful physical figure, made of Yordanka Derilova a convincing and high quality Brünnhilde.

Hagen was interpreted by the bass Petar Buchkov, who sang effectively, managing to combine the anger that animates the character with the subtlety and stealth with which it operates.

The soprano Tsvetana Bandalovska sang the divided Gutrune. As had already been noted, her beautiful and clear timbre voice, combined with a great figure, helped to create a credible character.

Gunther was played by Atanas Mladenov, who sang with correction and pitch, translating the erased and passive personality of Hagen's half-brother.

Waltraute was incarnated by Tsveta Sarambelieva, who displayed a good vocal power and an assertive vocal style, which made the dialogue between her and Brünnhilde quite well done.

Alberich was again Biser Georgiev, and he did not disappoint.

The Norns were sung by Lyubov Metodieva, Ina Pertova and Tsveta Sarambelieva, having fulfilled vocally effectively, in addition to good presence on stage.

The Rhinemaidens were sung by Irina Zhekova, Silvia Teneva and Elena Marinova.

We can see here a video with the summary of this production.

Thus ended the first tetralogy that I was privileged to attend, in an opera house less in evidence and that it is not an obvious destination, but that presented a high quality spectacle that rivals the world's best present productions.
In short, an operatic experience that I will not forget.

4 comentários:

  1. Muito obrigado por esta magnífica colecção de textos. Seguramente que serão mais uma referência de consulta obrigatória para os amantes de Wagner e, sobretudo, para quem for ver uma das óperas do Anel (já que esta oportunidade ímpar de conseguir ver o Anel completo será, realmente, de excepção).
    E que interessante e enriquecedor é ler textos de autores diferentes sobre as mesmas obras. Aprendemos sempre mais um pouco e "vemos e ouvimos" aspectos que não tínhamos, ainda, notado tão claramente.
    Seguramente que para si será um marco inesquecível e, para todos nós que só aqui contactámos com estes relatos, é uma fonte de prazer, inspiração e um incentivo para procurar as grandes obras em teatros menos "sonantes".

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    1. Caro Fanático_Um,
      Obrigado pelas suas simpáticas palavras.
      Para além do prazer de partilhar uma experiência operática ímpar, tentei que os textos pudessem, modestamente, contribuir para a inesgotável discussão sobre a encenação e interpretação das óperas de Wagner, mormente do Anel.
      Para mim, paralelamente à pura fruição musical, a discussão e troca de ideias sobre as obras, os seus intérpretes, as produções e as gravações existentes, constitui uma outra dimensão, também ela imprescindível, da paixão pela música. E penso que um blog como este vive precisamente desse gosto por uma partilha que enriqueça a própria experiência musical.

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  2. João Baptista, gostei muito de ler esta reportagem. Como escreveu o Fanático _Um, não é fácil assistir-se à tetralogia completa, e deve ser fascinante ver como cantores diferentes compõem os mesmos personagens nas diversas óperas, que em parte foi o que aqui nos proporcionou.
    Seria interessante encontrar alguns dos cantores noutros teatros de õpera, assim como o encenador.

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    1. Caro Gi,
      Fico satisfeito por saber que estes textos lhe suscitaram interesse.
      Como bem diz, teria imenso prazer em encontrar alguns destes cantores noutros palcos de ópera. E considero que a qualidade dos mesmos justificaria plenamente uma projecção mais alargada. Penso, designadamente, em Martin Iliev, Yordanka Derilova e Nikolay Petrov.

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