domingo, 16 de abril de 2017

PAGLIACCI, Teatro Nacional de São Carlos, Lisboa, 04/04/2017


De José António Miranda, mais uma contribuição para o blogue:

PAGLIACCI     (Ruggero Leoncavallo)
Ópera em dois Actos  (1892)
Libreto de Ruggero Leoncavallo
   Direcção musical: Martin André
   Encenação: Rodula Gaitanou
   Cenografia: José Capela
   Roupas: Mariana Sá Nogueira
   Luzes: Rui Monteiro
   Fotografias: José Carlos Duarte
   Canio: Peter Auty
   Nedda: Norah Amsellem
   Tonio: Igor Gnidii
   Peppe: Carlos Guilherme
   Silvio: Thomas Lehman
   Aldeãos: João Queirós, João Rosa
   Orquestra Sinfónica Portuguesa
   Coro do Teatro Nacional de São Carlos   Dir. Giovanni Andreoli
   Coro Juvenil de Lisboa   Dir. Nuno Margarido Lopes
   Produção: Teatro Nacional de São Carlos (2017)

Pagliacci, de Leoncavallo, inserida como primeira parte de uma programação dupla, é um acontecimento relativamente habitual, dada a reduzida extensão temporal da obra. Quando assim é, o critério determinante para a escolha das obras e da sua ordenação é com frequência a autoria comum.
Não foi assim desta vez, e por força de acasos que não interessam aqui, também a encenação foi neste caso entregue a diferentes autores.
Independentemente destes factos, a verdade é que a ópera de Leoncavallo tem por si só valia mais do que suficiente para suportar uma apresentação isolada.
E portanto, podendo tal apresentação ser apreciada independentemente das circunstâncias em que é feita, vejamos então brevemente o que foi esta sua presença no São Carlos.



Fotografias de Jorge Carmona / Antena 2 RTP

Se quiséssemos resumir em poucas linhas o que pudemos ver diríamos que se trata de uma proposta cénica convencional demonstrando contudo a agilidade operacional suficiente para a libertar dos excessos decorativistas tão frequentes neste campo e neste repertório. Mérito da encenação.
Porém, sob o ponto de vista conceptual, e se acreditarmos nas palavras da encenadora, a proposta estaria investida de um valor simbólico, metadramático. E ainda, se fizermos fé nas palavras do director artístico da casa, a mesma proposta estaria vocacionada para abrir uma série de futuras iniciativas centradas nesse valor a partir da sua explicitação cenográfica.
Deixando de lado tais afirmações, pareceu-nos que em verdade o espectáculo não logrou alcançar a profundidade simbólica alegadamente desejada, e vamos tentar explicar porquê.



É verdade que a ópera começa de forma auspiciosa, com o palco do teatro ambulante disposto no meio da cena enquanto à sua volta vão rodando os futuros espectadores, aldeãos na alegria do regresso da companhia de saltimbancos, num movimento circular.
E a solução adoptada pouco depois para a construção das estátuas que reproduzem os elementos decorativos escultóricos que ladeiam o proscénio do São Carlos, como num jogo de puzzle nas mãos de múltiplos agentes, é plasticamente muito bela.



Mas a partir desse momento, e algo surpreendentemente, esta dinâmica é interrompida, como se tudo parasse. E em vez de se completar a construção desse palco maior por sobre o pequeno palco do teatro ambulante é este que, rodando agora ele também, nos revela a sua outra face, o palco e a quarta parede do São Carlos.
A razão pela qual a encenação optou por este salto qualitativo na narrativa cenográfica passa-nos ao lado.

De facto essa opção parece algo irracional, pois torna de imediato gratuito todo o laborioso processo anterior de construção, transformando aliás as estátuas-puzzle laterais em elementos cenográficos redundantes, desnecessários, inúteis porque integrando, embora em menor escala, a quarta parede do teatro. Não por acaso por isso não voltaremos a ver esses elementos.
O problema maior reside porém na ruptura que esta opção provoca na leitura semântica da obra. Não chega colocar em cena um mini-palco caricatural e anunciar meta-teatro para que este aconteça. O processo de identificação permitido pela dinâmica inicial sofre aqui uma brutal interrupção que remete tudo o que se passa depois para a categoria do anedótico.

Não somos já nós, os espectadores na sala do São Carlos, que entramos como pares dos aldeãos na tosca plateia de tábuas corridas para a representação final.


Pelo contrário, a partir daqui somos simplesmente remetidos para o nosso lugar de passivos assistentes de uma peça que vai ser representada numa caricatura da nossa sala para outros espectadores aos quais somos estranhos, os aldeãos.
Não sendo original, esta solução de reproduzir o palco do teatro no palco não consegue assim neste caso ultrapassar a mera função mecânica determinada pela narrativa do libreto.



Porém, e algo inesperadamente, ela tem aqui o mérito de funcionar de algum modo como uma metáfora do estado actual do nosso teatro lírico: uma espécie de casa de ópera pobre que naquilo que nos apresenta se aproxima dos padrões habituais do teatro ambulante tão bem caricaturados na obra de Leoncavallo.

De algum modo correspondendo harmonicamente a esta impressão visual foi também o que se ouviu. Uma orquestra tosca por ausência de quem lhe tome o pulso e lhe dê rumo, acompanhando um elenco de província, num entorno pobre, para gáudio de um público ávido porque faminto, mas por isso mesmo pouco exigente em relação ao que se passa em palco.
Contudo não é suficiente dizer que a orquestra funcionou em modo rotineiro. Martin André não impediu alguns desacertos e a sua direcção foi pesada, sem qualquer subtileza. E assim, a interpretação orquestral apenas ganhou alguma consistência no final.



Pelo contrário, a interpretação dramática foi em geral razoável, apesar de que Gaitanou apenas conseguiu fazer expressar plenamente toda a força do libreto no acto final em palco à la commedia del’arte.
Canio o palhaço esteve bem e Nedda a mulher, algo estridente no registo agudo. Em geral o Peppe de Carlos Guilherme terá sido talvez o mais equilibrado.
Contrastando com os solistas, o coro, cuja deslocação em palco foi em geral muito bem conseguida, apresentou-se sem qualquer subtileza numa berraria cansativa e inexpressiva: la commedia e stupenda!.




JAM       10/04/2017

2 comentários:

  1. Gostei muito de ler a sua análise, Fanático_Um. A melhor que li sobre esta produção.

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    1. O texto é de José António Miranda, não meu. E concordo consigo Mário, este autor escreve sempre com grande qualidade.

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